terça-feira, 20 de outubro de 2015

Um poema de Ingeborg Bachmann


KEINE DELICATESSEN
SEM ACEPIPES

  
Já nada me agrada.
  
 
Deverei eu
enfeitar uma metáfora
com uma flor de amendoeira?
Crucificar a sintaxe
sobre um efeito de luz?
Quem é que vai quebrar a cabeça
com coisas tão fúteis?
 
 
Aprendi a entender as coisas
com as palavras
que existem
(para a classe mais baixa)
 
 
Fome
Vergonha
Lágrimas
e
Trevas.
 
Com o soluço impuro,
com o desespero
(e eu desespero ainda com o desespero)
por tanta miséria,

pelo estado do doente, pelo custo de vida,
sobreviverei.
  
 
Não descuido a escrita
mas a mim.
Os outros sabem
sabe Deus
o que fazer com as palavras.
Eu não sou o meu médico assistente.

 
 
Deverei eu
prender um pensamento,
conduzi-lo à cela iluminada de uma frase?
Alimentar o olhar, o ouvido
com nacos de palavras de primeira qualidade?
Estudar a líbido de uma vogal?
Investigar a cotação erótica das nossas consoantes?
 
 
Terei eu,
com a cabeça desfeita pelo granizo,
com a cãibra da escrita nesta mão,
sob o peso de trezentas noites,
de rasgar o papel,
varrer as tramas de óperas de palavras,
destruindo assim: eu tu e ele ela isso

 
nós vós?
 
 
(Devo. Devem os outros.)

A minha parte – que desapareça! 
In:
III. ÚLTIMOS POEMAS (1957-1967)
 
INGEBORG BACHMANN, O TEMPO APRAZADO POEMAS (1953-1967)
edição bilingue selecção, tradução e introdução JOÃO BARRENTO JUDITE BERKEMEIER


 




 

 
 
 

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