sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Gente das boas maneiras - públicas, da aparente seriedade para impressão de correcção, do respeito - fingido, do respeito nunca sentido quanto mais praticado, gente que  procura mostrar na ironia pseudo- ferida a superioridade que não tem e assim espera selar os lábios a voz que fale de sua justiça e abafar razão da voz do outro e a voz da razão do outro.
 
Só a ironia - que é distância afectiva em relação ao outro - é verdadeira, a ferida não, pois não pode sentir-se ferido aquele que feriu outro deliberadamente e em gozo e em riso.
 
Naquelas noites fui demasiado usada e gozada e abertamente tão espoliada - e colectivamente, embora não tenha dado qualquer consentimento para enquanto conversava com um amigo, outras pessoas, que nem conheço, ouvirem a conversa que eu julgava processar-se privadamente com ele - fui afectivamente tão abusada que qualquer gesto, silêncio ou palavra, insincero, qualquer gesto insincero já não me cega, já não me manipula emocionalmente, já não me diminui para me fazer desaparecer na minha própria razão, já não me cala na minha verdade, não elimina a verdade.

Põem-te a mão na boca para te a fecharem para simultaneamente parecerem gentis e dolorosos mas não põem a mão na sua consciência que fazendo surgir algum pequeno remorso lhes abrisse o coração ao que feriram  - não, isso nunca. Continuam a mostrarem-se eles os feridos - e alegres.

E assim tem que ser - senão não tinham justificação para a enormidade sem fim e eterna que fizeram comigo. E não há.

Mas folgo por saber que se encontra viva.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Verdade


Hão-de ter reparado que informei de novos conteúdos, sobretudo musicais, as mensagens, não apenas os transformando como até fazendo passar alguns a inexistidos, assim provando que aqueles podem ser alterados, esvaziados, substituídos, mantendo-se as mesmas datas. A verdade pode ser apagada, querendo optar pelo silêncio ou por uma forma sublimada de a comunicar, o que a música elevadamente serve.

 

Pode criar-se também a aparência de uma verdade, informar um vazio de mensagem, vazio criado por texto que se apagou ou que nunca existiu, para fortalecer uma mentira como verdade, sustentada nas mesmas formas neste segundo caso usadas para falsificação temporal não para exprimir a verdade de outra maneira mas pura e simplesmente para modificar a verdade.

 

Por este último facto, não posso ungir com os panos da minha piedade, com o óleo do silêncio o seu rosto ferido. Na realidade, as feridas do seu rosto mais não são do que carimbos, dele não escorre sangue e nem mesmo a tinta aqui é metáfora para sangue - carimbos que alguém sobre ele estampou. Não é o mesmo que cicatrizes ou desfiguração.

 

 

 

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Árvore


II - Cacos

Todo o bem que recebemos é um voto de confiança de Deus em nós – visa a reintegração dos seres. Não o merecemos, a nenhum bem - nós fomos tão inconcebivelmente maus. Ele faz-nos esquecer o que fomos para suspender o mal que somos e pensando nós que somos bons, agirmos em bem. Nisto consiste a compaixão de Deus. Na hora de pagarmos as nossas dívidas, temos que as pagar, embora possamos escolher o contrário - e se um dia estilhaçaste uma alma serás partido no corpo, e se um dia estilhaçaste um corpo, terás que ser partido na alma. E se um dia estilhaçaste um corpo, terás que ser partido na alma e se um dia estilhaçaste uma alma serás partido no corpo

A seguir, regressamos. 

Dez





Por Elise e Artur




 

O pássaro do tempo

terça-feira, 17 de novembro de 2015

As vinhas da ira

 

 
 
 
As árvores não enlouquecem, não se cansam das suas formas, da sua cor, da sua voz que o vento faz balançar entre murmúrios mudos.
As árvores ficam. E permanecem em mim.

Foste rude comigo.

Sou a memória cega, a palavra gaga. A ideia dos jardins artificiais, por boa ideia que seja, deu-me não sei o quê dentro de mim. Lembrei-me do funcionamento mecânico e lógico e frio por de trás de cada coisa bela, o funcionamento mecânico do mundo: a fria desordem. Negócios ocultos. Um raio apanha-nos.

Experiência. O ser pesa-me mas eu flutuo.

Escrevo-te. Apesar de tudo, apesar de mim. E eu peso tão pouco. 
A tua ausência em mim - ou a ausência de qualquer outro. Já não choro.

A solidão é sempre melhor que a presença do outro.

Meus braços como punhais ferindo a terra, buscando o deus com letra minúscula ainda não sei porquê.
O deus profundo em mim, boca que devora e que me arvora. Eu sou uma árvore escutando o rumor das suas folhas, levo-me. Elevo-me. Relevo-me. Escuto o relevo da montanha, da montanha que a si mesma se sobe. Formas esquecidas não lembradas sequer pelo deus. Formas que a si mesmas se lembram e se sonham em memória de alguém para não serem tão sozinhas. O deus vivo que se escurece em si para ver se encontra alguma luz. Apago-me para que alguém se acenda. É sempre assim.

A inteligência obscura, a força obscura que me leva ao entendimento. Minha linguagem é oblíqua como um punhal fala da ferida do morto.

Não pensar de cabeça baixa, no desejo desgraçado de querer arrancar o coração à terra. Não, não desejo arranca-lo. Só ouvi-lo. Ouço um jardim. Estou estática como as árvores, vertical no meu sossego. Sossego de coisa que já não é perturbada. Sem lugar para a impaciência. A tempestade é apenas riso ou vómito.

O sentido literal das metáforas (frágeis) é geralmente cómico.

Ouço. Penso de cabeça erguida, a luz entra como um raio e me afunda para essa vibração, essa dor primeira de ser um útero. Útero a sangrar.
A vida é fêmea. Só fêmea. Fêmea rejeitada, fêmea que não se quer, a que não se quer voltar, condição difícil. O macho foi criado para a fêmea e não a fêmea para o macho. É isso. A lei natural é esta. Não, não cantes o Pai. Canta a Mãe.

 
Há no tempo um padecimento de horas. Se o tempo tivesse uma consciência subjectiva de si próprio, que instantes não amaria ele, daquele amor que não flui e portanto não frui, os deuses são filhos do tempo, as horas fizeram-se humanas.

Os deuses falam-me ao ouvido.
(...)
As minhas mãos, duas manchas
Os meus pés, dois -----------------

Adeus, diz-te. Sangram os lábios com essa palavra. Punhal que vem de dentro.

O meu mundo é incomunicável. É uma dor de silêncio, de palavras que se pairam surdas.
 
Meu peito bate em mim como a asa de Deus roçando o vácuo.

Preciso ir, necessitando ficar. Sair de casa, do grande ventre, não. Aí é o bosque, o coração do bosque. Aí vivo como as feras e as feras degladiam-se ao ouvi-las.
(...)
Ouvidos, ouvidos escutem-me: minha alma outra vez regressa, regressa, regressa.


Manuscrito II:
Fragmentos sem data de um diário
[porção auroral d'alma]
notas, apontamentos ficcionados
(o «eu» como investigação e matéria fundadora de Criação)
Cronografia da alma íntima de si mesma
Volume Único - fragmentos 001 - 390 (fol. 317- 618 de II)
Colecção textos-ferida:
Obra amada - rosto dividido. O nome e o não nome intactos 

Maria João Aguiar da Cunha
Dos meus diários dos anos de 90
 
Páginas 527-530 de
Manuscrito II: Fragmentos sem data de um diário
 
 


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Conjunção (intemporalidades do ser)


«Vi na minha lembrança, isto é, recordei: chamei ao espírito - exercendo uma faculdade dele - a poeira dos objectos: a imagem»

 «Toda eu sou biologia, memória biológica da alma»

 «Sou um processo imaginário»

 «Meu coração não bate, lateja»

«A minha face é um buraco negro onde a alma se abisma»

«O eu debaixo de mim plataforma onde ando e me deito em equilíbrio, trampolim de onde salto até à manifestação da minha aparência»

«Despeço-me do ar. O ar é o último sítio de que me despeço, guardo memória do ar para depois [de morrer] a minha alma respirar.

«Estou semi-consciente nas convulsões»

«Pus as mãos no meu coração e elas desapareceram, meu coração antropófago. Tenho as mãos presas»

«Eu respiro a aura das pessoas»

«Meu corpo é uma lesão. Alma e corpo ajustam-se, devoram-se um ao outro e eu desapareço»

«Esta sombra caiu do sítio mais puro do céu. toda ela é essência e luz»

«A lua caiu na noite do meu peito, gelo aquecendo o meu útero»

«Ancora – os pés no coração, o coração na alma, a alma nos olhos, na pele»

 «Deus adormeceu nos meus braços como um feto se forma sem dor no ventre da mãe»

«Tenho a esquizofrenia das sereias: gostava de ter carne para amar os homens mas sou só espírito.»   [eu sofria de anorexia, pesava apenas 35 kg)

«Pesar as imagens interiores? Elas não têm peso? Ó, são elas que como pedra me fazem ter os pés na terra»

«Escrever: pôr em acção o próprio ser»

«Introspecção: abrem-se muitas portas mas o caminho é só um, o dos abismos»

«Abro o me coração à vida como se abrisse os pulsos e a minha pena é capital: transfiguro-me na minha própria essência. transmigro para mim mesma. Adormeço ao fundo. as estrelas são o meu berço. Suicidei-me à minha frente»

«A alma gravita em torno de mim, é o meu cometa [porque me segue], enquanto o corpo anda rectilineamente, é o meu cometa perpendicular»

«É da alma que me vem o ar. O ar é interior em mim»
 

in: Fragmentos sem data de um diário

notas, apontamentos ficcionados

(o «eu» como investigação e matéria fundadora de Criação)

Maria João Aguiar da Cunha 
 
 
 

 
 
 
 
 

 

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Um poema de Ingeborg Bachmann


KEINE DELICATESSEN
SEM ACEPIPES

  
Já nada me agrada.
  
 
Deverei eu
enfeitar uma metáfora
com uma flor de amendoeira?
Crucificar a sintaxe
sobre um efeito de luz?
Quem é que vai quebrar a cabeça
com coisas tão fúteis?
 
 
Aprendi a entender as coisas
com as palavras
que existem
(para a classe mais baixa)
 
 
Fome
Vergonha
Lágrimas
e
Trevas.
 
Com o soluço impuro,
com o desespero
(e eu desespero ainda com o desespero)
por tanta miséria,

pelo estado do doente, pelo custo de vida,
sobreviverei.
  
 
Não descuido a escrita
mas a mim.
Os outros sabem
sabe Deus
o que fazer com as palavras.
Eu não sou o meu médico assistente.

 
 
Deverei eu
prender um pensamento,
conduzi-lo à cela iluminada de uma frase?
Alimentar o olhar, o ouvido
com nacos de palavras de primeira qualidade?
Estudar a líbido de uma vogal?
Investigar a cotação erótica das nossas consoantes?
 
 
Terei eu,
com a cabeça desfeita pelo granizo,
com a cãibra da escrita nesta mão,
sob o peso de trezentas noites,
de rasgar o papel,
varrer as tramas de óperas de palavras,
destruindo assim: eu tu e ele ela isso

 
nós vós?
 
 
(Devo. Devem os outros.)

A minha parte – que desapareça! 
In:
III. ÚLTIMOS POEMAS (1957-1967)
 
INGEBORG BACHMANN, O TEMPO APRAZADO POEMAS (1953-1967)
edição bilingue selecção, tradução e introdução JOÃO BARRENTO JUDITE BERKEMEIER


 




 

 
 
 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Um ramo de salgueiro como narrador (Fábula)


Quatro fragmentos de embrião



I. «Amigo leitor, desculpa interromper o teu passeio, embater assim em teu ombro. É que hoje a tormenta acerca-se e o vento acha-se forte como um danado. A humidade e o frio do meu corpo magro são desagradáveis. Eu busco a tua presença, ó leitor, como um cobertor que me há-de aquecer e esconder. Devolver à minha forma humana. Mas se digo «vento» propriamente nada se agita pois o ar é como um barco e a ondulação do mar atinge-o como um engenho mecânico propalador do movimento sobre as águas mas lá dentro um espaço de ar ele eleva-se imóvel, descansando seu músculo e descansando é mais retraído. Talvez esteja ensimesmado em seu desejo de movimento enquanto a activa ventania o molesta e o sacode, lhe toma a vez. O vento é bolha de ar que expira na boca da ventania. As nuvens o acodem agindo seu bondoso auxílio girando em formas que desfalecem mas que não são inconsistentes. A humidade e o frio do meu corpo magro são desagradáveis. Já o vapor mergulhou no sangue como uma alma anima um corpo e a veste de movimento e de sombrio gemido que dos corredores subterrâneos do coração chega ao acordado coração, esse que é ainda o mais adormecido… e por solitário caminho se vai perdendo em bosques sonhados e intuídos e em cidades mortas que não param de respirar onde as estações do ano, memória cíclica que são as fases lunares da eternidade que à semelhança da lua colhendo suas fases como pétalas que caiem desabrochando a flor e a luz, fixam a imóvel-móvel eternidade no eixo do Tempo. Eis, pois, a repetição, malha do Tempo, geada rendilhada como um osso em estado de fragilidade até ao ponto da invisibilidade mas não da desaparição ou mancha animal desaparecida ostentando como auréola a invisibilidade, como cobertor estranho e inesperado desses fiapos de tutano, tapando e protegendo do frio, o germe do frio em indissociável penetração no austero vale do ar em sua expressão descansada e com o éter íntimo da verdade, da alma, todo derramado no espaço. A imensa tabescência do inacabado destino que assim se continua, ferindo a morte com a boca aberta e absorta da espera: ela é já a imagem viva de todas as consistências da carne expostas na sua futilidade».



II. «Abandona, ó leitor apegado, os espinhos na rosa do texto e deixa o arbusto selvagem em seu sono sonhar sua paz que é sua essência e que os candeeiros antigos suguem, da passada luz de que têm secreta memória, os óleos com que outra vez se acenderão a iluminar e a velar os sonâmbulos sentidos que lhe dão sentido e verdade – (…). Eu sou um fragmento de espaço, um país de memória, o país da memória. Apresento-me imediatamente. Sou a narradora insegura deste fragmento de lembrança ou episódio-névoa que inunda o meu sangue irreal de instância apresentadora de verbo que aqui será como um vime, verde ramo, sim não te incomodes com esta estranheza pois por este caminho passavas e o distraído cesteiro perdeu um dos seus ramos: lá terás que o seguir, certo que ele não se dobrará à inverdade mesmo por virtude da sua flexibilidade e fá-lo-ás contente pois será tão fácil acompanhá-lo em sua desdita.

- «Certo Verão eu havia lido Sophia num jardim, perto do mar que borbulhava na minha memória sob o fogo da minha imaginação, no silêncio do mundo, longe da doença e da cidade. Ligava-me nesse jardim a certa ideia de infidelidade. O jardim não era cuidado e apresentava-se o mais perto do natural, lembrando mais, necessariamente, a Natureza. Isto dava-me um conforto primevo e punha-me na posse de um segredo de bem, um segredo de fonte e eu amava mais aquele espaço original, eu a mais perto de Deus e do estado selvagem da criação. Eu, primitiva e absurda, alimentando a terra com a minha imparável alma e ela espiritualizando-se, eu a mãe-da-lua e de todas as esferas de luz que como uma bola de cristal traziam dentro ventres de tempo, de futuro e de saudade, tudo coisas por acontecer ou não acontecidas ou sonhadamente acontecidas, ancoras ancestrais aportando o mar em firmes chãos de oceanos fundos que também alimentavam as férteis terras dos espaços todos. Eu, o solar onde o ser habitava gemendo e rastejando, gritando e subindo pelas paredes, alojando-se nos muros e nos tabiques e nos tapumes e nos muros e nas cercas».



III. «Magoei-te? Não? Ah!... Não tinhas dado por nada…isto é, por mim… Na vida de uma alma desgraç…».

- «Interrompo aqui o apólogo pois a sombra humana, sombra de mergulhadas raízes em mim ainda cobre o meu fundo, não sabendo eu ao certo se o não terá originado de todo e porque necessito descontinuar todos por virtude de ter sido impedido, perdão, impedida – opto definitivamente pelo género feminino – de me continuar, logo eu que sou mulher. E não obstante o meu recém-nascimento sou já anciã e te confesso imediatamente, sem timidez ou pudor mas por inimagináveis escrúpulos insignificantes – sou implicativa ao ponto de me causar infelicidade, por exemplo, pelo seguinte facto: no ar viril e estático (pois o masculino activo é um estado de preguiça do espírito, verdadeiro assassino da alma, inimigo, pois, de Deus, afrontador da perfeição) se acomoda a doce brisa que o embala, essa prostituta, imbenévola porque vende carícias apenas na estação do Estio, do sol nado mas não do nocturno e frio, ao sol-posto e também diurno, (…) te confesso, leitor-cura, que os meus filhos foram mortos, o meu amante tomado por outra. Confidencio. Que aos irmãos eu falhei. E não nego. À mãe e ao pai matei eu. E revelo. O meu lugar no mundo foi usurpado, rainha velha caída, folha morta sem sombra do seu Outono. Eu, ausente e desleixada, achando que se largasse o tempo a doença e a morte não aconteceriam. Tu pensas, perplexo, que deliras ao ouvir-me, tu, senhor da tua razão e da tua dignidade, tu de natureza falida e coração inoperante, tu reduzido ao escombro flamejante da carne e ao edifício empedernido do juízo, leitor racional…bebes o meu delírio em tua taça de realidade maravilhosamente equilibrada entre as tuas mãos circenses, sobre os teus lábios ardidos-ardentes seduzidos do fogo maligno…e isto a despeito dos ataques e convulsões provocados pelo abjecto líquido que ela contém e que tu invejas e almejas roubar e no riso sagrado que ela origina colocar teu nome como obra tua... Estarás tentado a bebê-la? Não. Tu exibirás o cálice do anti sangue como se fosse o sangue do anticristo. (…) E farás a tua prelecção, será a tua missa anti-negra se bem que não professes outra religião que a do ateísmo (pois em ti não crês como eu em ti) e te rias cheio de convicção – mas convicção de quê, Deus meu? – do crente e da sua comovente fé. E te sentirás puro, mais imaculado que Maria e tendo desta maneira superado o estado de mulher em ti, ah leitor em que creio! como em deus pai criador…, esmagarás, espero, a serpente que em seu (meu) coração alquímico transforma o obscuro amor em cristalino veneno. (…) pensa duas vezes, tu que te abandonas a qualquer leitura concedendo por momentos a própria natureza das coisas, tomando a literatura como um licor fictício, julgando teu fígado a salvo sobretudo quando me deres em resposta a tua bílis. E dirás que nada do que eu digo é verdade, teve lugar ou possibilidade de acontecer, «como, perguntarás, num fragmento de pó de tempo aparecerá inteira e limpa a eternidade, o facto eterno, o crime e a bondade, a imbranqueada, para sempre promíscua nódoa e a acção conspícua?» Mas é um erro de vária ordem dar-te voz com a minha voz, pois na minha diferença se estabelece a minha singularidade. Porque pessoalizar-te, isto é, assenhorear-me da tua pessoa seria inundar-te com a minha pessoa e o teu domínio de mim então seria absoluto: tal aguçaria teu apetite de canibal, e antes que me proclamasse tua senhoria tu serias já hóspede guloso e enfartado, devorando o meu incalculado convite à tua assimilação de mim e assim a anfitriã tornada ladrão ver-se-ia talvez obrigada a roubar o que é seu se ladra realmente fosse ou no mínimo designando o que era seu como seu ante o espalhafato do mundo ou aquilo que sou se outro se apessoar deixa de ser eu e é então uma questão de oportunismo, de golpe, agora é a tua vez vê lá se consegues fazer de ti mas não! O outro terá sido realmente fecundado porque a boa palavra do bem apenas fecunda…pois há também a má palavra do bem…E parecendo, não obstante, ao olho do crítico e ao do intuitivo que me imponho como erva daninha a impedir que outro nasça e fale. E também porque abjuro tal e toda a violentação, que arrombem meu útero para outros darem à luz os meus filhos. Assim, «a imbranqueada, para sempre promíscua nódoa» seria uma afirmação totalitária outorgadora da tua consciência como eu quisesse que ela surgisse, e a minha voz condescendente mas nunca maternal esterilizaria teu ser e tua existência. É que hoje realmente a tormenta acerca-se deste lugar, povoado onde ninguém está por instinto e cautela mas onde os incautos e os cheios de alma habitam com a negligência que lhes é tão natural, tomando por naturalidade a alegria, em última instância poderia dizer-se que o mal não é erradicado do mundo porque o ingénuo não acredita nele se o mal não existisse mesmo. Ermo povoado como se este lugar fosse o inferno e o vento sopra forte como se estivesse um condenado a insuflar com suas excitadas, enfurecidas narinas e a propalar pelo mundo, desse inferior demoníaco submundo, o seu incêndio. E o propagador movimenta as chamas, regulando o lume. Farejando o conhecido enxofre em boa verdade ele busca mais pura essência e fragrância e bem podia, por momentos antes arejar o seu nariz, se se desse o caso de algum arrependimento. Mas não. Ou talvez…aspirando o mundo».



IV. «A humidade e o frio do meu corpo magro são desagradáveis. Magoei-te? Não? Ah!... Não tinhas dado por nada…isto é, por mim… Na vida de uma alma desgraçada, em momentos de vendaval nunca ninguém dá por nada, já reparaste? Isto é, dão por ela, dão…ela é um insulto mas um insulto cómico. Aquele que foi atingido surge como uma bala disparada, perdida no que parece ser uma instância de lazer, um campo de férias ou um local de bondoso e descontraído convívio e não sabe a atingida, ou a transformada inversamente em alvo, não está instruída a bala-alvo, porque não se habitua o transfigurado a olhar os seus irmãos como inimigos, não sabe por sua vez atingir um inimigo e ei-la no ar, mais desnorteada que um cretino, procurando um sentido para a sua rota desmiolada, dizendo em plena guerra «eu venho em paz». Então a guerra detém-se por acção da inépcia de um e da natureza foliona de outros e folgazões os guerreiros são, de repente, animalescos espectadores em estado de escárnio e o entretanto tornado campo de batalha definitivamente um circo inusitado. Os seres vivem afeiçoados ao Carnaval e às comédias baixas. Eu vivo entre os salgueiros durando o que as árvores crescem e o quanto permanecem e do tempo das árvores e do seu movimento eu intuo a memória dos poetas – dos não-lidos, dos por nascer e dos que conheço – e em mim alastra e se aprofunda, se assenta e organiza a existência fantástica dos seres imaginados, seres reais-imaginados: eu sou um recipiente do éter, de um não-metal é este recipiente, a minha madeira verde e tão tenra é maleável como barro, e nele o éter jaz como nuvem evaporada, gás escondido na invisibilidade, denso gás tenuemente escondido até não se provar que se trata aquele lugar de um esconderijo, sagrado esconderijo da mais pura e verdadeira das substâncias. Este éter é o sopro da criação, uma inspiração que pede expiração que é singular, inevitável morte a criar Deus. Assim o Verbo nasce para o mundo e por via do temporal mostra a sua intemporalidade, tendo para isso que morrer na cruz.



In O vaso de cristal (narrativa datada da Primavera de 2010, ferida de interrupção como as outras). Maria João Aguiar da Cunha