Quatro fragmentos de embrião
I. «Amigo leitor, desculpa
interromper o teu passeio, embater assim em teu ombro. É que hoje a tormenta
acerca-se e o vento acha-se forte como um danado. A humidade e o frio do meu
corpo magro são desagradáveis. Eu busco a tua presença, ó leitor, como um cobertor
que me há-de aquecer e esconder. Devolver à minha forma humana. Mas se digo
«vento» propriamente nada se agita pois o ar é como um barco e a ondulação do
mar atinge-o como um engenho mecânico propalador do movimento sobre as águas
mas lá dentro um espaço de ar ele eleva-se imóvel, descansando seu músculo e
descansando é mais retraído. Talvez esteja ensimesmado em seu desejo de
movimento enquanto a activa ventania o molesta e o sacode, lhe toma a vez. O
vento é bolha de ar que expira na boca da ventania. As nuvens o acodem agindo
seu bondoso auxílio girando em formas que desfalecem mas que não são
inconsistentes. A humidade e o frio do meu corpo magro são desagradáveis. Já o
vapor mergulhou no sangue como uma alma anima um corpo e a veste de movimento e
de sombrio gemido que dos corredores subterrâneos do coração chega ao acordado
coração, esse que é ainda o mais adormecido… e por solitário caminho se vai
perdendo em bosques sonhados e intuídos e em cidades mortas que não param de
respirar onde as estações do ano, memória cíclica que são as fases lunares da
eternidade que à semelhança da lua colhendo suas fases como pétalas que caiem
desabrochando a flor e a luz, fixam a imóvel-móvel eternidade no eixo do Tempo.
Eis, pois, a repetição, malha do Tempo, geada rendilhada como um osso em estado
de fragilidade até ao ponto da invisibilidade mas não da desaparição ou mancha
animal desaparecida ostentando como auréola a invisibilidade, como cobertor
estranho e inesperado desses fiapos de tutano, tapando e protegendo do frio, o
germe do frio em indissociável penetração no austero vale do ar em sua
expressão descansada e com o éter íntimo da verdade, da alma, todo derramado no
espaço. A imensa tabescência do inacabado destino que assim se continua,
ferindo a morte com a boca aberta e absorta da espera: ela é já a imagem viva
de todas as consistências da carne expostas na sua futilidade».
II. «Abandona, ó leitor
apegado, os espinhos na rosa do texto e deixa o arbusto selvagem em seu sono
sonhar sua paz que é sua essência e que os candeeiros antigos suguem, da
passada luz de que têm secreta memória, os óleos com que outra vez se acenderão
a iluminar e a velar os sonâmbulos sentidos que lhe dão sentido e verdade –
(…). Eu sou um fragmento de espaço, um país de memória, o país da memória.
Apresento-me imediatamente. Sou a narradora insegura deste fragmento de
lembrança ou episódio-névoa que inunda o meu sangue irreal de instância
apresentadora de verbo que aqui será como um vime, verde ramo, sim não te
incomodes com esta estranheza pois por este caminho passavas e o distraído
cesteiro perdeu um dos seus ramos: lá terás que o seguir, certo que ele não se
dobrará à inverdade mesmo por virtude da sua flexibilidade e fá-lo-ás contente
pois será tão fácil acompanhá-lo em sua desdita.
- «Certo Verão eu havia
lido Sophia num jardim, perto do mar que borbulhava na minha memória sob o fogo
da minha imaginação, no silêncio do mundo, longe da doença e da cidade.
Ligava-me nesse jardim a certa ideia de infidelidade. O jardim não era cuidado
e apresentava-se o mais perto do natural, lembrando mais, necessariamente, a
Natureza. Isto dava-me um conforto primevo e punha-me na posse de um segredo de
bem, um segredo de fonte e eu amava mais aquele espaço original, eu a mais
perto de Deus e do estado selvagem da criação. Eu, primitiva e absurda,
alimentando a terra com a minha imparável alma e ela espiritualizando-se, eu a
mãe-da-lua e de todas as esferas de luz que como uma bola de cristal traziam
dentro ventres de tempo, de futuro e de saudade, tudo coisas por acontecer ou
não acontecidas ou sonhadamente acontecidas, ancoras ancestrais aportando o mar
em firmes chãos de oceanos fundos que também alimentavam as férteis terras dos
espaços todos. Eu, o solar onde o ser habitava gemendo e rastejando, gritando e
subindo pelas paredes, alojando-se nos muros e nos tabiques e nos tapumes e nos
muros e nas cercas».
III. «Magoei-te? Não? Ah!... Não tinhas dado por
nada…isto é, por mim… Na vida de uma alma desgraç…».
- «Interrompo aqui o
apólogo pois a sombra humana, sombra de mergulhadas raízes em mim ainda cobre o
meu fundo, não sabendo eu ao certo se o não terá originado de todo e porque
necessito descontinuar todos por virtude de ter sido impedido, perdão, impedida
– opto definitivamente pelo género feminino – de me continuar, logo eu que sou
mulher. E não obstante o meu recém-nascimento sou já anciã e te confesso
imediatamente, sem timidez ou pudor mas por inimagináveis escrúpulos
insignificantes – sou implicativa ao ponto de me causar infelicidade, por
exemplo, pelo seguinte facto: no ar viril e estático (pois o masculino activo é
um estado de preguiça do espírito, verdadeiro assassino da alma, inimigo, pois,
de Deus, afrontador da perfeição) se acomoda a doce brisa que o embala, essa
prostituta, imbenévola porque vende carícias apenas na estação do Estio, do sol
nado mas não do nocturno e frio, ao sol-posto e também diurno, (…) te confesso,
leitor-cura, que os meus filhos foram mortos, o meu amante tomado por outra. Confidencio.
Que aos irmãos eu falhei. E não nego. À mãe e ao pai matei eu. E revelo. O meu
lugar no mundo foi usurpado, rainha velha caída, folha morta sem sombra do seu
Outono. Eu, ausente e desleixada, achando que se largasse o tempo a doença e a
morte não aconteceriam. Tu pensas, perplexo, que deliras ao ouvir-me, tu,
senhor da tua razão e da tua dignidade, tu de natureza falida e coração
inoperante, tu reduzido ao escombro flamejante da carne e ao edifício
empedernido do juízo, leitor racional…bebes o meu delírio em tua taça de
realidade maravilhosamente equilibrada entre as tuas mãos circenses, sobre os
teus lábios ardidos-ardentes seduzidos do fogo maligno…e isto a despeito dos
ataques e convulsões provocados pelo abjecto líquido que ela contém e que tu
invejas e almejas roubar e no riso sagrado que ela origina colocar teu nome
como obra tua... Estarás tentado a bebê-la? Não. Tu exibirás o cálice do anti
sangue como se fosse o sangue do anticristo. (…) E farás a tua prelecção, será
a tua missa anti-negra se bem que não professes outra religião que a do ateísmo
(pois em ti não crês como eu em ti) e te rias cheio de convicção – mas
convicção de quê, Deus meu? – do crente e da sua comovente fé. E te sentirás
puro, mais imaculado que Maria e tendo desta maneira superado o estado de
mulher em ti, ah leitor em que creio! como em deus pai criador…, esmagarás,
espero, a serpente que em seu (meu) coração alquímico transforma o obscuro amor
em cristalino veneno. (…) pensa duas vezes, tu que te abandonas a qualquer
leitura concedendo por momentos a própria natureza das coisas, tomando a
literatura como um licor fictício, julgando teu fígado a salvo sobretudo quando
me deres em resposta a tua bílis. E dirás que nada do que eu digo é verdade,
teve lugar ou possibilidade de acontecer, «como, perguntarás, num fragmento de
pó de tempo aparecerá inteira e limpa a eternidade, o facto eterno, o crime e a
bondade, a imbranqueada, para sempre promíscua nódoa e a acção conspícua?» Mas
é um erro de vária ordem dar-te voz com a minha voz, pois na minha diferença se
estabelece a minha singularidade. Porque pessoalizar-te, isto é, assenhorear-me
da tua pessoa seria inundar-te com a minha pessoa e o teu domínio de mim então
seria absoluto: tal aguçaria teu apetite de canibal, e antes que me proclamasse
tua senhoria tu serias já hóspede guloso e enfartado, devorando o meu
incalculado convite à tua assimilação de mim e assim a anfitriã tornada ladrão
ver-se-ia talvez obrigada a roubar o que é seu se ladra realmente fosse ou no
mínimo designando o que era seu como seu ante o espalhafato do mundo ou aquilo
que sou se outro se apessoar deixa de ser eu e é então uma questão de
oportunismo, de golpe, agora é a tua vez vê lá se consegues fazer de ti mas
não! O outro terá sido realmente fecundado porque a boa palavra do bem apenas
fecunda…pois há também a má palavra do bem…E parecendo, não obstante, ao olho
do crítico e ao do intuitivo que me imponho como erva daninha a impedir que
outro nasça e fale. E também porque abjuro tal e toda a violentação, que
arrombem meu útero para outros darem à luz os meus filhos. Assim, «a
imbranqueada, para sempre promíscua nódoa» seria uma afirmação totalitária
outorgadora da tua consciência como eu quisesse que ela surgisse, e a minha voz
condescendente mas nunca maternal esterilizaria teu ser e tua existência. É que
hoje realmente a tormenta acerca-se deste lugar, povoado onde ninguém está por
instinto e cautela mas onde os incautos e os cheios de alma habitam com a
negligência que lhes é tão natural, tomando por naturalidade a alegria, em
última instância poderia dizer-se que o mal não é erradicado do mundo porque o
ingénuo não acredita nele se o mal não existisse mesmo. Ermo povoado como se
este lugar fosse o inferno e o vento sopra forte como se estivesse um condenado
a insuflar com suas excitadas, enfurecidas narinas e a propalar pelo mundo,
desse inferior demoníaco submundo, o seu incêndio. E o propagador movimenta as
chamas, regulando o lume. Farejando o conhecido enxofre em boa verdade ele
busca mais pura essência e fragrância e bem podia, por momentos antes arejar o
seu nariz, se se desse o caso de algum arrependimento. Mas não. Ou talvez…aspirando
o mundo».
IV. «A humidade e o frio do
meu corpo magro são desagradáveis. Magoei-te? Não? Ah!... Não tinhas dado por
nada…isto é, por mim… Na vida de uma alma desgraçada, em momentos de vendaval
nunca ninguém dá por nada, já reparaste? Isto é, dão por ela, dão…ela é um
insulto mas um insulto cómico. Aquele que foi atingido surge como uma bala
disparada, perdida no que parece ser uma instância de lazer, um campo de férias
ou um local de bondoso e descontraído convívio e não sabe a atingida, ou a transformada
inversamente em alvo, não está instruída a bala-alvo, porque não se habitua o
transfigurado a olhar os seus irmãos como inimigos, não sabe por sua vez
atingir um inimigo e ei-la no ar, mais desnorteada que um cretino, procurando
um sentido para a sua rota desmiolada, dizendo em plena guerra «eu venho em
paz». Então a guerra detém-se por acção da inépcia de um e da natureza foliona
de outros e folgazões os guerreiros são, de repente, animalescos espectadores
em estado de escárnio e o entretanto tornado campo de batalha definitivamente
um circo inusitado. Os seres vivem afeiçoados ao Carnaval e às comédias baixas.
Eu vivo entre os salgueiros durando o que as árvores crescem e o quanto
permanecem e do tempo das árvores e do seu movimento eu intuo a memória dos
poetas – dos não-lidos, dos por nascer e dos que conheço – e em mim alastra e
se aprofunda, se assenta e organiza a existência fantástica dos seres
imaginados, seres reais-imaginados: eu sou um recipiente do éter, de um
não-metal é este recipiente, a minha madeira verde e tão tenra é maleável como
barro, e nele o éter jaz como nuvem evaporada, gás escondido na invisibilidade,
denso gás tenuemente escondido até não se provar que se trata aquele lugar de
um esconderijo, sagrado esconderijo da mais pura e verdadeira das substâncias.
Este éter é o sopro da criação, uma inspiração que pede expiração que é
singular, inevitável morte a criar Deus. Assim o Verbo nasce para o mundo e por
via do temporal mostra a sua intemporalidade, tendo para isso que morrer na
cruz.
In O vaso de cristal
(narrativa datada da Primavera de 2010, ferida de interrupção como as outras). Maria João Aguiar da Cunha