segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Árvore


II - Cacos

Todo o bem que recebemos é um voto de confiança de Deus em nós – visa a reintegração dos seres. Não o merecemos, a nenhum bem - nós fomos tão inconcebivelmente maus. Ele faz-nos esquecer o que fomos para suspender o mal que somos e pensando nós que somos bons, agirmos em bem. Nisto consiste a compaixão de Deus. Na hora de pagarmos as nossas dívidas, temos que as pagar, embora possamos escolher o contrário - e se um dia estilhaçaste uma alma serás partido no corpo, e se um dia estilhaçaste um corpo, terás que ser partido na alma. E se um dia estilhaçaste um corpo, terás que ser partido na alma e se um dia estilhaçaste uma alma serás partido no corpo

A seguir, regressamos. 

Dez





Por Elise e Artur




 

O pássaro do tempo

terça-feira, 17 de novembro de 2015

As vinhas da ira

 

 
 
 
As árvores não enlouquecem, não se cansam das suas formas, da sua cor, da sua voz que o vento faz balançar entre murmúrios mudos.
As árvores ficam. E permanecem em mim.

Foste rude comigo.

Sou a memória cega, a palavra gaga. A ideia dos jardins artificiais, por boa ideia que seja, deu-me não sei o quê dentro de mim. Lembrei-me do funcionamento mecânico e lógico e frio por de trás de cada coisa bela, o funcionamento mecânico do mundo: a fria desordem. Negócios ocultos. Um raio apanha-nos.

Experiência. O ser pesa-me mas eu flutuo.

Escrevo-te. Apesar de tudo, apesar de mim. E eu peso tão pouco. 
A tua ausência em mim - ou a ausência de qualquer outro. Já não choro.

A solidão é sempre melhor que a presença do outro.

Meus braços como punhais ferindo a terra, buscando o deus com letra minúscula ainda não sei porquê.
O deus profundo em mim, boca que devora e que me arvora. Eu sou uma árvore escutando o rumor das suas folhas, levo-me. Elevo-me. Relevo-me. Escuto o relevo da montanha, da montanha que a si mesma se sobe. Formas esquecidas não lembradas sequer pelo deus. Formas que a si mesmas se lembram e se sonham em memória de alguém para não serem tão sozinhas. O deus vivo que se escurece em si para ver se encontra alguma luz. Apago-me para que alguém se acenda. É sempre assim.

A inteligência obscura, a força obscura que me leva ao entendimento. Minha linguagem é oblíqua como um punhal fala da ferida do morto.

Não pensar de cabeça baixa, no desejo desgraçado de querer arrancar o coração à terra. Não, não desejo arranca-lo. Só ouvi-lo. Ouço um jardim. Estou estática como as árvores, vertical no meu sossego. Sossego de coisa que já não é perturbada. Sem lugar para a impaciência. A tempestade é apenas riso ou vómito.

O sentido literal das metáforas (frágeis) é geralmente cómico.

Ouço. Penso de cabeça erguida, a luz entra como um raio e me afunda para essa vibração, essa dor primeira de ser um útero. Útero a sangrar.
A vida é fêmea. Só fêmea. Fêmea rejeitada, fêmea que não se quer, a que não se quer voltar, condição difícil. O macho foi criado para a fêmea e não a fêmea para o macho. É isso. A lei natural é esta. Não, não cantes o Pai. Canta a Mãe.

 
Há no tempo um padecimento de horas. Se o tempo tivesse uma consciência subjectiva de si próprio, que instantes não amaria ele, daquele amor que não flui e portanto não frui, os deuses são filhos do tempo, as horas fizeram-se humanas.

Os deuses falam-me ao ouvido.
(...)
As minhas mãos, duas manchas
Os meus pés, dois -----------------

Adeus, diz-te. Sangram os lábios com essa palavra. Punhal que vem de dentro.

O meu mundo é incomunicável. É uma dor de silêncio, de palavras que se pairam surdas.
 
Meu peito bate em mim como a asa de Deus roçando o vácuo.

Preciso ir, necessitando ficar. Sair de casa, do grande ventre, não. Aí é o bosque, o coração do bosque. Aí vivo como as feras e as feras degladiam-se ao ouvi-las.
(...)
Ouvidos, ouvidos escutem-me: minha alma outra vez regressa, regressa, regressa.


Manuscrito II:
Fragmentos sem data de um diário
[porção auroral d'alma]
notas, apontamentos ficcionados
(o «eu» como investigação e matéria fundadora de Criação)
Cronografia da alma íntima de si mesma
Volume Único - fragmentos 001 - 390 (fol. 317- 618 de II)
Colecção textos-ferida:
Obra amada - rosto dividido. O nome e o não nome intactos 

Maria João Aguiar da Cunha
Dos meus diários dos anos de 90
 
Páginas 527-530 de
Manuscrito II: Fragmentos sem data de um diário